A Alquimia na China
Poucos sabem o que realmente é a alquimia. Seria uma sabedoria ou uma mântica? Uma
teurgia ou uma filosofia? Não poderia ser uma teoria certamente, mas, seria uma técnica?
Se fosse uma teoria deveria possuir um princípio histórico; se fosse uma técnica, suas
origens perder-se-iam nas brumas pré-históricas. Se as teorias tiveram origem na Jônia
clássica e no século VI a.C., as técnicas são tão antigas quanto a humanidade. Elas devem
Ter emergido da natureza humana à medida em que surgia também a consciência, no
momento em que o derradeiro hominídeo percebeu que poderia utilizar um galho de
árvore ou um fragmento de osso como arma ou instrumento. Nesse momento, surge algo
estranho à natureza, algo que não somente "é" mas também que "serve para". Pelo
contrário, a teoria é uma irrupção do espírito, uma nova maneira de pensar que surge com
a filosofia grega, quando a consciência humana já atinge o alto nível da sabedoria.
A alquimia tem algo muito relacionado com as técnicas arcaicas mas, por outro lado,
aparecem nela crenças aurorais na humanidade, que devem Ter surgido com o despertar
da consciência. Contudo, aparecem interpretações na alquimia só possíveis depois do
advento das religiões reveladas, da filosofia grega e das profecias judaicas. Todos estes
elementos dão o presságio de uma origem alquímica complexa.
Quando argumenta-se que técnica e humanidade nasceram simultaneamente, com o
despertar da consciência, não quer se dizer que o homem seria tão somente o animal
capaz de dispor de utensílios. Embora haja entre os antropólogos a regra de reconhecer
fósseis humanos pela simples presença, junto deles, de instrumentos, essa presença
implica necessariamente algo maior: a consciência da utilização. O homem não só molda a
madeira e a pedra para usá-las como instrumento, mas também os fabrica e prepara de
formas cada vez mais elaboradas, adaptando-os a sua conveniência.
E assim nascem as técnicas - no sentido mais amplo da palavra - não como adaptação do
homem ao seu meio natural mas, pelo contrário, como adaptação deste último às
necessidades humanas.
Por outro lado, a emergência da consciência, como algo destacado da natureza, traz
consigo, também, a percepção dos limites dessa própria consciência: o terror daquilo que
permanece desconhecido, o medo da noite e da morte. Quando as coisas mergulham na
obscuridade, em contraste com a clareza do dia, o homem deixa de saber a que se ater.
Daí a necessária conotação entre consciência e saber, de um lado, e luz e esclarecimento,
do outro. O terror da morte e a necessidade de devolver os mortos ao reino desconhecido
levam à crença de um reino obscuro dos fantasmas, alguns benfazejos e outro, terríveis
inimigos. Tudo em estranha correspondência com algo interno que se manifesta não só
como consciência, mas também como emoção: amor e medo. Esse algo interior assemelha-se aos fantasmas e aos demônios e parece sobreviver à morte, pois pode
pensar e desejar além do que já está aqui claro e distinto na consciência. Está, ao mesmo
tempo, nas ações claras e ordenadas do dia e nos sonhos e devaneios emocionados da
noite.
Em suma, o homem emerge da natureza com a consciência de sua capacidade de fabricar
instrumentos e de os utilizar, indelevelmente, ligada à cresça de um mundo sobrenatural,
do qual sua alma faz parte. São dois pólos da realidade humana, sem qualquer dos quais o
homem perece. É dessa forma que se conjectura terem as técnicas, a magia e a feitiçaria
perpassando juntas toda a pré-história e avançado pela história até bem próximo de nós.
As pedras, dispostas em círculos perfeitos, encontradas em certos sítios arqueológicos
sul-africanos, ou os restos mortais tingidos de vermelho do ocre, dos túmulos pré-históricos
europeus, atestam essa polaridade, tanto quanto a crença da conjugação dos opostos que
preside toda a opus chemica.
Essa polaridade mantém-se, após a pré-história, nas civilizações míticas, onde tudo é
regido pelas lendas transmitidas de geração a geração onde se relata, de forma
paradigmática, como deuses, semideuses e heróis criaram o mundo e nele estabeleceram
o governo, a guerra, o amor, os costumes e as técnicas. As operações das técnicas míticas
são, portanto, repetidas ritualisticamente, pois todo comportamento humano, numa
civilização mítica, não é espontâneo e inventivo, mas profundamente programado, como
numa peça teatral. Não há causalidade mas, sim, a simultaneidade das cenas. Quando o
feiticeiro põe-se, no alto do penhasco, a exortar o nascimento do sol, não significa que
pretenda "causar" a aurora. O que há é uma cena que se repetirá indefinidamente igual,
sendo o rito, com a simultaneidade da cerimônia e do nascer do sol.
O mito, ao contrário do que se tem afirmado, não é uma explicação de um fenômeno
natural, nem é uma crença ou uma prática. O mito impõe-se mais pela emocionalidade de
que é carregado do que pela intencionalidade. Baseia-se no estreito parentesco da alma
humana e a ordem cósmica e resulta da crença que, no ritual, deve estabelecer-se a
simultaneidade entre desejos e emoções e fenômenos naturais. Assim, por exemplo,
quando num certo dia do ano a estrela Sírius levanta-se no céu um pouco antes do
nascente, um sacerdote, tomado pelo espírito de Deus, executará a cerimônia em estreita
obediência a um ritual de propiciação. A este segue-se a semeadura do trigo nas margens
do rio Nilo. Ao terminá-la, as águas crescerão e o trigo germinará.
Sob este enfoque, as técnicas nas civilizações míticas preservariam o caráter mágico de
sua origem na pré-história, mas adquiririam um caráter ritualístico. Tanto a arquitetura
como a medicina arcaicas, como a mineração, a cerâmica e a tinturaria, basear-se-iam na
crença de que a alma humana poderia participar dos desígnios dos deuses e demônios
repetindo ritualisticamente suas ações, ou roubando-lhes os segredos, assim assegurando
a simultaneidade entre a ação do técnico mítico e a ordem cósmica. Provavelmente
também essas seriam a origem e o caráter da astrologia e da matemática, tanto entre os
egípcios ou babilônios como entre os chineses ou hindus.
Mas, quanto a alquimia? Teria ela também a mesma origem? Há uma evolução das
técnicas arcaicas dos mineiros, ferreiros e curandeiros para as doutrinas alquímicas. A
origem da alquimia está nas relações do homem arcaico com as substâncias minerais, e
particularmente no seu comportamento ritualístico. Por meio de numerosos exemplos de
práticas, não só nas civilizações míticas antigas mas, também, nos povos que mantêm
ainda um comportamento mítico, a crença de que os metais geravam-se nas profundezas
da terra, da mesma forma que cresciam os fetos no ventre das mulheres, dominava o
pensamento mítico. Assim, a ritualística do mineiro para extraí-los da terra era semelhante
à dos parteiros. Por outro lado, a preparação dos metais a partir dos minerais nas forjas
primitivas, pela ação transformadora do fogo e do vento soprado pelos foles, assemelhava-se às torturas das práticas ascéticas por que deviam passar os neófitos, a
fim de atingir a perfeição dos mestres. A arte techné dos alquimistas seria, assim, a de
produzir em suas oficinas os mesmos processos, embora acelerados, por que passariam
os minérios da terra, em sua lenta evolução, até atingir a forma definitiva dos metais.
Como, no seio da terra, os metais impuros almejariam e atingiriam, com o passar do
tempo, a forma incorruptível do outro, assim também, simultaneamente com a opus
chemia, a alma do alquimista atingiria a mesma perfeição.
Da mesma forma, na medicina arcaica encontrar-se-ia um outro gérmen da alquimia na
procura de uma droga milagrosa que conferiria longevidade e mesmo imortalidade aos que
a ingerissem. Provavelmente as drogas alucinógenas estão nessa mesma origem. Ou seja,
a técnica mágico-mítica de curar as doenças do corpo não se separava da busca pela
perfeição anímica.
Contudo é difícil aceitar uma simples evolução entre o universo anímico do
minerador, ferreiro ou curandeiro arcaico e o do alquimista. Há na alquimia algo que não se encontra
nas técnicas antigas. Há uma "sabedoria" ausente naquelas. E "sabedoria" não é resultado
de lenta evolução; pelo contrário, ela aparece, simultaneamente entre todas as civilizações,
no período compreendido entre 800 e 200 a.C., quando surgem, no Oriente o confucionismo, o taoísmo e o budismo e, no Ocidente, o zoroastrismo, as profecias
judaicas e a filosofia grega.
Se a alquimia tem uma origem nas técnicas arcaicas mágico-ritualísticas dos curandeiros,
mineiros e ferreiros, ela só pode instituir-se, como tal, a partir de uma sabedoria que
procura compreender a relação anímica do homem com a material. Entenda-se como
"sabedoria" um corpo de doutrina que tem um autor - o sábio - e traz consigo a marca da
individualidade e circunstância desse autor. Uma sabedoria propõe-se sempre como
verdade; entretanto, pode ser desprezada e refutada pelos incrédulos ou insensatos. É
verdade que, com o advento das religiões reveladas, a sabedoria é considerada como
tendo sua fonte em Deus; mas é um Deus sábio e único que fala pela boca de seus
provetas. O mito não é assim. Ele não tem autor, emerge das brumas do antiquíssimo e,
pondo-se como lenda, não necessita aprovação nem sugere rejeição; põe-se como
modelo, e não como conselho a ser seguido ou rejeitado.
Assim, como técnica arcaica a alquimia seria universal, pois emerge do próprio despontar
da consciência humana, comum a toda a humanidade. Entretanto, como sabedoria, embora interpretado como uma mesma necessidade humana, ela difere segundo as
mentalidades e circunstâncias dos sábios que a criaram; as quais prendem - se necessariamente às concepções do mundo e do espírito, peculiares a cada uma das
civilizações sapienciais em que surgiram.
Havia, então, desde os tempos imemoriais da China, as técnicas dos minérios e das
fundições de bronze, ao lado da medicina arcaica dos "elixires", cuja finalidade última era
a obtenção da longevidade. Ambas eram míticas, ritualísticas e mágicas. Os técnicos-mágicos se constituíram como artesãos. Eram, de um lado, possuidores de
receitas pelas quais extraíam os metais da terra, fabricavam ligas e imitavam o ouro; de
outro lado, preparavam poções que curavam os doentes, conferiam-lhes longevidade e,
talvez, imortalidade. Estabelecera-se desde muito um paralelismo entre o comportamento
dos metais e dos homens. Aqueles como estes sofriam doenças, contaminar-se-iam e
padeceriam; com exceção do ouro, que resiste tanto à umidade quanto ao fogo, permanecendo íntegro após centenas de operações. O homem, também, poderia
melhorar-se por práticas ascéticas e ingestão de drogas, até atingir a perfeição e a
imutabilidade do ouro.
Porém, a partir do século V a.C. aparece a sabedoria chinesa. Com os ensinamentos de
Confúcio (c551-c479 a.C.), Mo-Tzu, no quinto século, e de Lao-Tzu, que floresceu cerca
do ano 300 a.C., algo novo aparece na China. A idéia de que o taoísmo remonta às
confrarias dos ferreiros, detentores das artes mágicas e segredos divinos, não pode
contrapor-se à idéia do aparecimento do pensamento sapiencial na China. Com efeito há
no taoísmo aspectos míticos e antigos; porém, esses são agora interpretados pela
sabedoria do Tao. Aliás, todas as sabedorias das várias civilizações sapienciais
incorporaram mitos anteriores, transformando-os em sabedorias. Mas, o caráter destas
últimas é radicalmente diferente dos primeiros. Por exemplo: na técnica mágico-mítica,
aquele que conseguisse obter o ouro a partir do cinábrio adquiriria imortalidade se
absorvesse o outro potável. Com o advento da sabedoria de Lao-Tzu, as virtudes do ouro
ou do cinábrio são interpretadas através da dinâmica dos opostos Yang e Yin (os
princípios do masculino, claro e celeste, e do feminino, obscuro e terrestre) conduzidos à
conjugação, pela conduta do alquimista pautada na sabedoria do Tao. A partir de então, o
alquimista não será mais somente um artesão ou um mágico; ele é, também, um sábio que
entende os princípios que regem a realidade. Ele sabe como e por que, ao manipular os
metais para purificá-los até a forma de ouro, adquire ele mesmo perfeição ao obedecer ao
Tao. A palavra "Tao" é grafada, em chinês, por dois sinais: "cabeça" e "caminhar", que
correspondem a "caminhar conscientemente". Ela foi traduzida por: sentido, caminho,
providência e, até, Deus. Aparece algumas vezes conotando a luz (daí consciência) e vida
(daí caminho) e finalmente como essência (aquilo que existe por si mesmo). O Tao
domina tanto o homem como o céu e a Terra; daí sua harmonia com o princípio alquímico do parentesco entre alma e cosmo. O
célebre historiador da ciência chinesa Joseph Heedham afirma que a alquimia chinesa
nasce pela adoção, por parte dos sábios taoístas, das técnicas artesanais e dos
curandeiros.
Embora haja menções a alquimistas em escritos chineses do segundo século antes de
Cristo, o primeiro alquimista chinês razoavelmente conhecido é Ko Hung (343-283 a.C.),
cujo livro, publicado sob o pseudônimo de Pao p'u tzu, contém dois capítulos sobre
elixires de longa vida, baseados em mercúrio e arsênico.
Contudo, sábios, alquimistas e artesãos formavam grupos sociais diferentes; os primeiros
buscavam a perfeição através da sabedoria, evitando qualquer esoterismo. Os segundos
procuravam a transmutação dos metais, sabendo que isso se faria simultaneamente com a
obtenção da própria perfeição e longevidade. Os terceiros procuravam a simples
fabricação de ouro vulgar; porém, havia ainda alguns que se dedicavam a contrafação do
outro por motivos desonestos.
Mais tarde, a alquimia chinesa, sob o influxo do budismo tântrico, tomou um novo rumo.
A operação alquímica veio a ser entendida como fazendo-se, não no forno ou vaso
alquímicos, no próprio corpo do alquimista. Contudo, a lei original chinesa do Tao
mantém-se. É ela que guia a prática ascética para atingir a perfeição e a imortalidade, pela
meditação, pelo controle da respiração e pela retração do sêmen na união sexual. Está
escrito no livro chinês "O Segredo da Flor de Ouro", com palavras do mestre Lu-Tzu, que
"os adeptos ensinaram as pessoas a manter o originário e preservar o uno", isto é, o
movimento circular da luz e a preservação do centro.
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