A Alquimia na Europa
Da mesma forma que a alquimia árabe, a européia nasceu pronta. Isto é: na Europa não
houve aquela evolução desde uma técnico mágico-mítica até seu estágio final de
interpretação sapiencial sobre a transmutação dos metais, como paralela a uma processo
de salvação individual. A alquimia chegou à Europa através de traduções de textos árabes,
as quais, por sua vez, já eram adaptações e traduções dos velhos textos helenísticos ou de
tradições caldeias. Nestes textos originais, a alquimia já tinha adquirido um estágio final,
se bem que diferente da européia; pois que, evidentemente, houve uma reinterpretação cristã
ocidental. Entretanto, como a sabedoria que envolvia a opus árabe era o resultado de um
sincretismo greco-egípcio-judaico-caldaico, a reinterpretação cristã não encontrou
empecilhos que a obrigassem a radicais mudanças de sentido - se bem que adquirisse uma
forma herética ou bordejando a heresia.
Curiosamente o primeiro texto alquímico árabe traduzido para o latim foi o Livro da
Composição Alquímica, do príncipe Chalib ibn Yazid, que foi a primeira obra alquímica
em árabe. A tradução foi feita por Robert de Chester, em 1144, quiçá num daqueles
castelos-mosteiros dor Pirineus, na fronteira entre a Mouraria Ibérica e a Europa - lá
mesmo onde devem Ter tido origem grande parte das traduções do árabe para o latim,
que transferiram a cultura grega para o Ocidente nos séculos XI e XII.
A partir do século XIII o texto alquímico mais conhecido na Europa foi o De
Alchimia, cujo autor se escondia sob o nome latino de Senior. Só recentemente é que se descobriu
que esse texto era a tradução do árabe do livro Água de Prata e Terra Estrelada, de
Mohamed ibn Umail (900-960); pois que se encontrou uma edição bilingüe do mesmo. A
descoberta desse texto bilíngüe tornou sua interpretação mais fácil e útil para a história da
alquimia.
Marie Louise von Franz, no livro anteriormente citado diz que o Senior inicia seu relato
contando Ter penetrado, em companhia de sua soror mística, as câmaras secretas de uma
pirâmide egípcia e lá encontrado o segredo dos segredos, escrito em hieróglifos - os quais
não pôde decifrar. Mas, no meio da câmara havia a estátua de um velho sentado num
trono, tendo sobre os joelhos uma placa de mármore, semelhante a um livro aberto. A
placa, cujo desenho é reproduzido no De Chemia, de Senior, aparentemente conta o
segredo da alquimia. Na página seguinte aparece a figura de dois pássaros um sobre o
outro, cada qual bicando o rabo do outro, sendo o de cima alado, e o de baixo, sem asas,
repousa sobre uma esfera semelhante a uma Lua Nova. Acima dessa figura aparecem os
globos do Sol e da Lua. Nos cantos superiores na página da direita aparecem também o
sol e a lua mas, desta vez, mostrando raios. Na parte inferior há um Sol radiante,
estranhamente ostentando dois conjuntos concêntricos de raios.
O restante do texto pretende explicitar o significado desse simbolismo; entretanto, em vez
de explicá-lo, amplia o simbolismo com sugestões ainda mais herméticas. Apenas sugere
que a opus simbolizada pelos dois pássaros, mordendo cada qual a cauda do outro, como
na simbologia de oroboros, portanto, uma conjugação cíclica onde o fim e o princípio
coincidem. A ave sem asas é o feminino, o elemento telúrico que repousa sobre a Lua
escura: é o enxofre, elemento passional dos alquimistas. A ave alada é o masculino,
elemento urânico pois vive do ar: é o mercúrio dos alquimistas. Ambos conjugam-se para
que da sua união surja o ouro alquímico. Mas o que se passa com a matéria é paralelo ao
que acontece no céu, pela conjugação do Sol com a Lua. A página da direita parece
sugerir o resultado da conjuntio, pois Sol e Lua resplandecentes conjugam-se no Sol de
dois anéis radiantes. Mais adiante, em sua De Chemia, Senior escreve uma canção de
amor do Sol para a Lua, onde explicita o paralelismo entre a conjugação dos astros, a
fusão dos metais e a união sexual, simbolizando a absorção da Sabedoria pelo alquimista,
necessárias para a busca do ouro alquímico e de sua própria salvação. Esse paralelismo
entre a união sexual do homem com a mulher, feita no momento propício da conjugação
dos astros, e a união salvífica da alma com a Sabedoria divina pode ser sinal de influência
da mística árabe sobre a sapiência alquímica. Deve ter a mesma origem que o Cântico dos
Cânticos bíblico e, desta forma, agrega-se harmoniosamente à sabedoria alquímica
européia.
Entretanto, o desenvolvimento na Europa da "arte" alquímica, a partir da farmacopéia e
da metalurgia árabes, foi tão grande, ou maior do que o da "sapiência" que interpretava
esses processos. Sábios como Roger Bacon e médicos como Arnau Vilanova desenvolveram o lado
"experimental" da alquimia a ponto de a trazerem a um estágio de conhecimento sobre a matéria quase científico. Entretanto é de se
lembrar que o significado da palavra "experimental" era muito diferente do que se adotou depois do
advento da ciência moderna. A "experiência" alquímica européia era muito mais uma
"vivência" numa concepção animista da natureza, onde tudo é movido por uma "alma"
da qual a alma humana participa. Mas exatamente isso possibilitari o estreito paralelismo
entre o que acontecia com a matéria, durante sua transformação, e o que acorria na alma
do alquimista.
A passagem da alquimia para a química, tão bem postulada como evolução do vitalismo
de Roger Bacon para o mecanicismo de Robert Boyle, só foi possível devido a este
paralelismo entre matéria e alma. Pois tal paralelismo poderia ser aceito sem recorrência à
magia, tanto pelo aristotelismo do fim da Idade Média - com seu conceito de "natureza
animada" - como pelo platonismo do Renascimento - com seu realismo das idéias. Porém,
tornou-se inaceitável com o advento da filosofia e da ciência modernas no século
XVII, quando espírito e matéria foram irremediavelmente separados como substâncias
distintas e incomunicáveis entre si. Com isso a alquimia deixou de ser possível como um todo
harmonioso. A "arte alquímica" evoluiu para a química. A "sapiência alquímica" tornou-se
uma mística, no pensar de alguns ou uma subcultura, no de outros.
Entretanto, no início deste século, C.G. Jung elaborou uma nova interpretação dos textos
alquímicos. Mostrou fenomenologicamente que a opus alchimica seria uma projeção
sobre a individualização. Um processo que pode ocorrer na segunda metade da vida de
alguém preocupado com a sua melhoria interna ou, em termos religiosos, com a salvação
de sua alma.
Para mostrar isso, Marie Louise von Franz recorre a um texto alquímico autenticamente
europeu Aurora Consurgens, atribuído a São Tomás de Aquino. Conhecia-se já um
segundo volume deste texto, repleto de receitas sobre a arte de transmutação dos metais.
Mas foi o próprio Jung que descobriu, num mosteiro medieval suíço, a primeira parte
onde se encontra o elemento sapiencial atribuído a São Tomás.
A Aurora Consurgens começa pela evocação da Sabedoria Divina como condutora do
processo alquímico. Tal sabedoria, pelo próprio título do texto, está ligada ao surgimento
do dia ou da "hora do ouro", sugerindo a passagem do obscuro da noite para a claridade
do dia, associada à perfeição do ouro. Contudo, a princípio, a Sabedoria aparece como
grande nuvem negra envolvendo terra negra e inundada e, também, alma do adepto. É a
primeira fase da opus, o "nigredo" - caracterizada pela confusão da matéria. A
"matéria-prima" deve ser preparada através da tortura pelo fogo, paralela aos padecimentos anímicos dos adeptos, e purificados em sucessivos
banhos, soluções e sublimações. É evocada então a conjuntio opositorum, união do esposo e esposa,
conjugação dos metais para que nasça a pedra capaz de transmutar os metais e salvar os
adeptos. É a fase do "albedo" - quando se estabelece a ordem sapiencial esclarecedora. É
o momento dos sucessivos banhos purificadores das substâncias a serem conjugadas.
Finalmente há um último capítulo do livro que é um canto de amor do esposo à esposa -
onde, à maneira árabe, são evocados os encantos do corpo da amada, propiciando a união
da qual surgirá o ouro alquímico. É a fase final da opus - o "rubedo", assimilado à vitória
sobre a morte e à redenção da humanidade por Cristo.
Marie Louise von Franz mostra como toda essa simbologia é a mesma que, segundo a
psicologia profunda, aparece nos sonhos, devaneios e desenhos dos pacientes em processo
de individualização. Por tal processo, quando bem-sucedido, a personalidade adquiriria
unidade e verdade por meio da integração (conjuntio opositorum) de elementos inconscientes da psique.
Desta forma, a alquimia européia explicita esta estranha simbiose da interpretação
sapiencial, hereticamente baseada na doutrina cristã, com uma prática antiquíssima
mágico-mítica da manipulação da matéria para conseguir o ouro e a imortalidade. Sua
crença como verdade objetiva não é mais possível; contudo ela permanece, no profundíssimo de nós mesmos, como fonte donde brota a realidade.
Poucos sabem o que realmente é a alquimia. Seria uma sabedoria ou uma mântica? Uma
teurgia ou uma filosofia? Não poderia ser uma teoria certamente, mas, seria uma técnica?
Se fosse uma teoria deveria possuir um princípio histórico; se fosse uma técnica, suas
origens perder-se-iam nas brumas pré-históricas. Se as teorias tiveram origem na Jônia
clássica e no século VI a.C., as técnicas são tão antigas quanto a humanidade. Elas devem
ter emergido da natureza humana à medida em que surgia também a consciência, no
momento em que o derradeiro hominídeo percebeu que poderia utilizar um galho de
árvore ou um fragmento de osso como arma ou instrumento. Nesse momento, surge algo
estranho à natureza, algo que não somente "é" mas também que "serve para". Pelo
contrário, a teoria é uma irrupção do espírito, uma nova maneira de pensar que
surge com a filosofia grega, quando a consciência humana já atinge o alto nível da sabedoria.
A alquimia tem algo muito relacionado com as técnicas arcaicas mas, por outro lado,
aparecem nela crenças aurorais na humanidade, que devem ter surgido com o despertar
da consciência. Contudo, aparecem interpretações na alquimia só possíveis depois do
advento das religiões reveladas, da filosofia grega e das profecias judaicas. Todos estes
elementos dão o presságio de uma origem alquímica complexa.
Quando argumenta-se que técnica e humanidade nasceram simultaneamente, com o
despertar da consciência, não quer se dizer que o homem seria tão somente o animal
capaz de dispor de utensílios. Embora haja entre os antropólogos a regra de reconhecer
fósseis humanos pela simples presença, junto deles, de instrumentos, essa presença
implica necessariamente algo maior: a consciência da utilização. O homem não só molda a
madeira e a pedra para usá-las como instrumento, mas também os fabrica e prepara de
formas cada vez mais elaboradas, adaptando-os a sua conveniência.
E assim nascem as técnicas - no sentido mais amplo da palavra - não como adaptação do
homem ao seu meio natural mas, pelo contrário, como adaptação deste último às
necessidades humanas.
Por outro lado, a emergência da consciência, como algo destacado da natureza, traz
consigo, também, a percepção dos limites dessa própria consciência: o terror daquilo que
permanece desconhecido, o medo da noite e da morte. Quando as coisas mergulham na
obscuridade, em contraste com a clareza do dia, o homem deixa de saber a que se ater.
Daí a necessária conotação entre consciência e saber, de um lado, e luz e esclarecimento,
do outro. O terror da morte e a necessidade de devolver os mortos ao reino desconhecido
levam à crença de um reino obscuro dos fantasmas, alguns benfazejos e outro, terríveis
inimigos. Tudo em estranha correspondência com algo interno que se manifesta não só
como consciência, mas também como emoção: amor e medo. Esse algo interior assemelha-se aos
fantasmas e aos demônios e parece sobreviver à morte, pois pode pensar e desejar além do que já está aqui claro e distinto na
consciência. Está, ao mesmo tempo, nas ações claras e ordenadas do dia e nos sonhos e devaneios emocionados da
noite.
Em suma, o homem emerge da natureza com a consciência de sua capacidade de fabricar
instrumentos e de os utilizar, indelevelmente, ligada à cresça de um mundo sobrenatural,
do qual sua alma faz parte. São dois pólos da realidade humana, sem qualquer dos quais o
homem perece. É dessa forma que se conjectura terem as técnicas, a magia e a feitiçaria
perpassando juntas toda a pré-história e avançado pela história até bem próximo de nós.
As pedras, dispostas em círculos perfeitos, encontradas em certos sítios arqueológicos
sul-africanos, ou os restos mortais tingidos de vermelho do ocre, dos túmulos pré-históricos europeus, atestam essa polaridade, tanto
quanto a crença da conjugação dos opostos que preside toda a opus chemica.
Essa polaridade mantém-se, após a pré-história, nas civilizações míticas, onde tudo é
regido pelas lendas transmitidas de geração a geração onde se relata, de forma
paradigmática, como deuses, semideuses e heróis criaram o mundo e nele estabeleceram o
governo, a guerra, o amor, os costumes e as técnicas. As operações das técnicas míticas
são, portanto, repetidas ritualisticamente, pois todo comportamento humano, numa
civilização mítica, não é espontâneo e inventivo, mas profundamente programado, como
numa peça teatral. Não há causalidade mas, sim, a simultaneidade das cenas. Quando o
feiticeiro põe-se, no alto do penhasco, a exortar o nascimento do sol, não significa que
pretenda "causar" a aurora. O que há é uma cena que se repetirá indefinidamente igual,
sendo o rito, com a simultaneidade da cerimônia e do nascer do sol.
O mito, ao contrário do que se tem afirmado, não é uma explicação de um fenômeno
natural, nem é uma crença ou uma prática. O mito impõe-se mais pela emocionalidade de
que é carregado do que pela intencionalidade. Baseia-se no estreito parentesco da alma
humana e a ordem cósmica e resulta da crença que, no ritual, deve estabelecer-se a
simultaneidade entre desejos e emoções e fenômenos naturais. Assim, por exemplo,
quando num certo dia do ano a estrela Sírius levanta-se no céu um pouco antes do
nascente, um sacerdote, tomado pelo espírito de Deus, executará a cerimônia em estreita
obediência a um ritual de propiciação. A este segue-se a semeadura do trigo nas margens
do rio Nilo. Ao terminá-la, as águas crescerão e o trigo germinará.
Sob este enfoque, as técnicas nas civilizações míticas preservariam o caráter mágico de
sua origem na pré-história, mas adquiririam um caráter ritualístico. Tanto a arquitetura
como a medicina arcaicas, como a mineração, a cerâmica e a tinturaria, basear-se-iam na
crença de que a alma humana poderia participar dos desígnios dos deuses e demônios
repetindo ritualisticamente suas ações, ou roubando-lhes os segredos, assim assegurando a
simultaneidade entre a ação do técnico mítico e a ordem cósmica. Provavelmente
também essas seriam a origem e o caráter da astrologia e da matemática, tanto entre os egípcios ou
babilônios como entre os chineses ou hindus.
Mas, quanto a alquimia? Teria ela também a mesma origem? Há uma evolução das
técnicas arcaicas dos mineiros, ferreiros e curandeiros para as doutrinas alquímicas. A
origem da alquimia está nas relações do homem arcaico com as substâncias minerais, e
particularmente no seu comportamento ritualístico. Por meio de numerosos exemplos de
práticas, não só nas civilizações míticas antigas mas, também, nos povos que mantêm
ainda um comportamento mítico, a crença de que os metais geravam-se nas profundezas
da terra, da mesma forma que cresciam os fetos no ventre das mulheres, dominava o
pensamento mítico. Assim, a ritualística do mineiro para extraí-los da terra era
semelhante à dos parteiros. Por outro lado, a preparação dos metais a partir dos minerais nas forjas
primitivas, pela ação transformadora do fogo e do vento soprado pelos foles, assemelhava-se às torturas
das práticas ascéticas por que deviam passar os neófitos, a fim de atingir a perfeição dos mestres. A arte techné dos alquimistas seria,
assim, a de produzir em suas oficinas os mesmos processos, embora acelerados, por que passariam os
minérios da terra, em sua lenta evolução, até atingir a forma definitiva dos metais. Como,
no seio da terra, os metais impuros almejariam e atingiriam, com o passar do tempo, a
forma incorruptível do outro, assim também, simultaneamente com a opus chemia, a alma
do alquimista atingiria a mesma perfeição.
Da mesma forma, na medicina arcaica encontrar-se-ia um outro gérmen da alquimia na
procura de uma droga milagrosa que conferiria longevidade e mesmo imortalidade aos que
a ingerissem. Provavelmente as drogas alucinógenas estão nessa mesma origem. Ou seja,
a técnica mágico-mítica de curar as doenças do corpo não se separava da busca pela
perfeição anímica.
Contudo é difícil aceitar uma simples evolução entre o universo anímico do
minerador, ferreiro ou curandeiro arcaico e o do alquimista. Há na alquimia algo que não se encontra
nas técnicas antigas. Há uma "sabedoria" ausente naquelas. E "sabedoria" não é
resultado de lenta evolução; pelo contrário, ela aparece, simultaneamente entre todas as civilizações,
no período compreendido entre 800 e 200 a.C., quando surgem, no Oriente o confucionismo, o taoísmo e o budismo e, no Ocidente, o
zoroastrismo, as profecias judaicas e a filosofia grega.
Se a alquimia tem uma origem nas técnicas arcaicas mágico-ritualísticas dos curandeiros,
mineiros e ferreiros, ela só pode instituir-se, como tal, a partir de uma sabedoria que
procura compreender a relação anímica do homem com a material. Entenda-se como
"sabedoria" um corpo de doutrina que tem um autor - o sábio - e traz consigo a marca da
individualidade e circunstância desse autor. Uma sabedoria propõe-se sempre como
verdade; entretanto, pode ser desprezada e refutada pelos incrédulos ou insensatos. É
verdade que, com o advento das religiões reveladas, a sabedoria é considerada como
tendo sua fonte em Deus; mas é um Deus sábio e único que fala pela boca de seus
provetas. O mito não é assim. Ele não tem autor, emerge das brumas do antiquíssimo e,
pondo-se como lenda, não necessita aprovação nem sugere rejeição; põe-se como modelo,
e não como conselho a ser seguido ou rejeitado.
Assim, como técnica arcaica a alquimia seria universal, pois emerge do próprio despontar
da consciência humana, comum a toda a humanidade. Entretanto, como sabedoria, embora interpretado como
uma mesma necessidade humana, ela difere segundo as mentalidades e circunstâncias dos sábios que a criaram; as quais
prendem - se necessariamente às concepções do mundo e do espírito, peculiares a cada uma das
civilizações sapienciais em que surgiram.
Havia, então, desde os tempos imemoriais da China, as técnicas dos minérios e das
fundições de bronze, ao lado da medicina arcaica dos "elixires", cuja finalidade última era
a obtenção da longevidade. Ambas eram míticas, ritualísticas e mágicas. Os técnicos-mágicos se
constituíram como artesãos. Eram, de um lado, possuidores de receitas pelas quais extraíam os metais da terra, fabricavam ligas e
imitavam o ouro; de outro lado, preparavam poções que curavam os doentes, conferiam-lhes longevidade e,
talvez, imortalidade. Estabelecera-se desde muito um paralelismo entre o comportamento
dos metais e dos homens. Aqueles como estes sofriam doenças, contaminar-se-iam e
padeceriam; com exceção do ouro, que resiste tanto à umidade quanto ao fogo, permanecendo íntegro após
centenas de operações. O homem, também, poderia melhorar-se por práticas ascéticas e ingestão de drogas, até atingir a perfeição e a
imutabilidade do ouro.
Porém, a partir do século V a.C. aparece a sabedoria chinesa. Com os ensinamentos de
Confúcio (c551-c479 a.C.), Mo-Tzu, no quinto século, e de Lao-Tzu, que floresceu cerca
do ano 300 a.C., algo novo aparece na China. A idéia de que o taoísmo remonta às
confrarias dos ferreiros, detentores das artes mágicas e segredos divinos, não
pode contrapor-se à idéia do aparecimento do pensamento sapiencial na China. Com efeito há
no taoísmo aspectos míticos e antigos; porém, esses são agora interpretados pela
sabedoria do Tao. Aliás, todas as sabedorias das várias civilizações sapienciais
incorporaram mitos anteriores, transformando-os em sabedorias. Mas, o caráter destas
últimas é radicalmente diferente dos primeiros. Por exemplo: na técnica mágico-mítica,
aquele que conseguisse obter o ouro a partir do cinábrio adquiriria imortalidade se
absorvesse o outro potável.
Com o advento da sabedoria de Lao-Tzu, as virtudes do ouro ou do cinábrio são
interpretadas através da dinâmica dos opostos Yang e Yin (os princípios do masculino,
claro e celeste, e do feminino, obscuro e terrestre) conduzidos à conjugação, pela conduta
do alquimista pautada na sabedoria do Tao. A partir de então, o alquimista não será mais
somente um artesão ou um mágico; ele é, também, um sábio que entende os princípios
que regem a realidade. Ele sabe como e por que, ao manipular os metais para purificá-los
até a forma de ouro, adquire ele mesmo perfeição ao obedecer ao Tao. A palavra
"Tao" é grafada, em chinês, por dois sinais: "cabeça" e "caminhar", que correspondem a "caminhar
conscientemente". Ela foi traduzida por: sentido, caminho, providência e, até, Deus.
Aparece algumas vezes conotando a luz (daí consciência) e vida (daí caminho) e
finalmente como essência (aquilo que existe por si mesmo). O Tao domina tanto o homem
como o céu e a Terra; daí sua harmonia com o princípio alquímico do parentesco entre
alma e cosmo. O célebre historiador da ciência chinesa Joseph Heedham afirma que a
alquimia chinesa nasce pela adoção, por parte dos sábios taoístas, das técnicas artesanais e
dos curandeiros.
Embora haja menções a alquimistas em escritos chineses do segundo século antes de
Cristo, o primeiro alquimista chinês razoavelmente conhecido é Ko Hung (343-283 a.C.),
cujo livro, publicado sob o pseudônimo de Pao p'u tzu, contém dois capítulos sobre
elixires de longa vida, baseados em mercúrio e arsênico.
Contudo, sábios, alquimistas e artesãos formavam grupos sociais diferentes; os primeiros
buscavam a perfeição através da sabedoria, evitando qualquer esoterismo. Os segundos
procuravam a transmutação dos metais, sabendo que isso se faria simultaneamente
com a obtenção da própria perfeição e longevidade. Os terceiros procuravam a simples
fabricação de ouro vulgar; porém, havia ainda alguns que se dedicavam a contrafação do
outro por motivos desonestos.
Mais tarde, a alquimia chinesa, sob o influxo do budismo tântrico, tomou um novo rumo.
A operação alquímica veio a ser entendida como fazendo-se, não no forno ou vaso
alquímicos, no próprio corpo do alquimista. Contudo, a lei original chinesa do Tao
mantém-se. É ela que guia a prática ascética para atingir a perfeição e a imortalidade, pela
meditação, pelo controle da respiração e pela retração do sêmen na união sexual. Está
escrito no livro chinês "O Segredo da Flor de Ouro", com palavras do mestre
Lu-Tzu, que "os adeptos ensinaram as pessoas a manter o originário e preservar o
uno", isto é, o movimento circular da luz e a preservação do centro.
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